Sandra Gama

Lembranças Guardadas

Em tempos de trocas de correspondências eletrônicas, observar esses cartões- postais me fez pensar sobre Lili Gonçalves e suas relações com as amigas e parentes distantes e seu tempo, o início do século XX. Tempo em que as pessoas trocavam cartas, perfumavam os papeis ou juntavam a eles objetos e pertences antes de enviarem aos destinatários e, através delas alimentavam amizades, inimizades, amores. A alegria sentida ao receber e abrir as cartas e postais funcionava como se se pudesse materializar o amigo distante. E, ela, ao observar as imagens impressas nos cartões cartas, escolhidos a dedo, assim como as palavras, punha-se a viajar. Numa viagem imaginária acionada por palavras, cheiros e imagens, Lili se familiarizava com personagens iconográficos e memorizava paisagens.
As personagens em sua maioria mulheres vestidas ao estilo Art Nouveau, bem aos moldes da Belle Époque.  As paisagens e lugares recortados e plasmados por outrem, mas que, possivelmente seus afetos gostariam que ela também estivesse presente neles, como numa panorâmica da Avenida Central do Rio de Janeiro ou num ângulo da Praça Castro Alves em direção à Avenida Sete em Salvador. A troca frequente dos cartões- cartas cumpria a função de estreitamento dos laços afetivos entre as correspondentes, remetia à passagem dos dias e relatava o cotidiano: “os meninos Mario e Arthur estão internos no collegio Anglo- Brazileiro” e momentos especiais: “Agradeço- te cordialmente os votos de felicidade que me desejas no decorrer deste anno”.  E servia para matar as saudades: “Ao receber teu mimoso postal senti tanto prazer que cheguei a chorar. Chorei de sentimento de estares tão longe e não poder abraçar-te...” Ou ainda para reclamar a interrupção da correspondência: “Há seguramente 15 dias que não recebo uma carta sua”. Os indícios de regularidade com que se correspondiam, sugerem a necessidade de acompanhar o andamento das vidas das missivistas, como um meio de se trazer para a presença as amigas e, assim, diminuir as distâncias geográficas que as separavam.
Assim, ler e reler as mensagens, contemplar as figuras, observar detalhes das caligrafias, dos selos e, por ventura, sentir os cheiros era uma forma de materializar as amigas ausentes e, quando a saudade e nostalgia se tornavam mais fortes ou mesmo quando a lembrança começava a esvaecer se recorria às correspondências para preservar na memória os traços, informações e episódios trocados e vividos do/ e com o ente querido. Creio que Lili foi uma dessas pessoas. Hoje, tempo em que ninguém mais escreve cartas; em que as mensagens trocadas viram lixo eletrônico a ser descartado para não sobrecarregar nossas caixas postais, contemplar esses cartões nos faz rememorar épocas passadas, nem tão remotas assim e, imaginar e quase poder sentir as mesmas emoções que supomos sentiram as nossas missivistas e, sobretudo, agradecer ao afeto materializado nesses papeis, pois graças a ele, Lili Gonçalves e seus descendentes não os descartaram, mas os preservaram como um pequeno tesouro, para ela principalmente, como um remédio para aliviar o peso da saudade. E quanto a nós, que não compomos sua herança familiar, agradecemos por esse hábito, sem ele, perderíamos a oportunidade de exercitar nossa imaginação a partir dessas memórias guardadas.