Valter de Oliveira


Universo Particular de Imagens e Palavras

“O beijo é o orvalho que banha a flor do amor” (manuscrito em um cartão postal de Lili Gonçalves)

O cartão postal é uma viagem. Para que seja objeto de fruição já demanda um deslocamento do remetente ao destinatário.Por correio ou particular ele percorre uma trajetória desconhecida por muitos até que finalmente cheguem às mãos do endereçado. Enviar não era garantia que fosse recebido. Os inúmeros extravios pelos serviços dos Correios podem insinuar as incertezas da sua chegada. Ao enviar um cartão postal do Rio de Janeiro para sua irmã Lili Gonçalves, no interior da Bahia, Raul escreve:“Não mando pelo correio para que tenha mais valôr, devido não confiar nesse nosso serviço público. É uma coisa original e eles poderiam extravial-o”. Um cartão postal significava uma representação do ausente. Uma imagem de uma bela paisagem do Rio de Janeiro poderia traduzir para quem recebia notícias uma sensação de conforto e de proximidade. Sempre que a saudade de alguém apertasse era possível dar uma olhada para o cartão e ler sua mensagem: “À minha querida irmãsinha do coração, envio o meu retrato e um beijo sincero e saudoso” ou “À brilhante luz do sol de hoje, 21 de agosto de 1906, (...) Aji Baptista, envia sinceras e respeitosas saudações à Mademoiselle Emiliana Torres Gonçalves e Silva”.
Lili Gonçalves, como conhecida, era uma garota quando recebeu essas e outras mensagens através dos cartões postais, nos primeiros anos do século 20, quando vivia na Fazenda Piabas, sertão da Bahia. Filha do eminente fazendeiro e político, José Gonçalves, sua coleção de postais traduz os valores da época em um mundo particular daquela jovem.
O cartão postal foi um importante instrumento de pedagogia do olhar. Os anos entre 1900 e 1925 foram considerados a “era de ouro dos cartões”. Através dos cartões postais, imagens de cidades, paisagens e pessoas do mundo eram usadas como forma de educação do olhar, dentro do princípio do progresso e da civilização.  Construções urbanas; arquiteturas exuberantes; paisagens bucólicas; fauna e flora de países tropicais ou tipos exóticos, como por exemplo, vendedores ambulantes e pessoas com deformidades, eram alguns dos temas explorados pelos cartões postais do princípio do século. Uma garota chamada Martha, cuja legenda indica possuir 13 anos, 127 quilos e 1,69 cm de altura, foi tema de uma série sobre exotismo. Admirado, Raul envia do Rio de Janeiro para sua colecionadora irmã Lili:“Envio-te este cartão por achal-o, para uma colecção, de muita originalidade. Eu a vi no palco do “Cinema Central””.
A cartofilia foi uma prática que virou moda entre os círculos de letrados em todo o mundo. Somente a França, que liderava esse mercado na época, produziu em 1910, 123 milhões de postais para atender ao público cada vez mais fascinado com o consumo desse produto de coleção. O Brasil acompanhou bem de perto essa epidemia das imagens postais. Desse modo, através do colecionismo de cartões, Lili Gonçalves vivia em sintonia com os requintes de educação e elegância defendidos pelas elites de seu tempo. Ainda que residente em uma fazenda, portanto distante dos centros urbanos onde a agitação da vida moderna era mais pulsante, não deixava de manter-se informada e identificada com aqueles valores.
A coleção de cartões postais de Lili Gonçalves atualmente encontra-se em posse de descendentes de seu irmão Raul. Lili não se casou e não teve filhos. A coleção estava em um álbum com 110 páginas agrupadas com dois ou três cartões em cada. Havia nele 291 cartões, todos diferentes. O álbum tem suas páginas adornadas com desenhos de temas angelicais e de flores. Em alguns momentos dá para perceber uma preocupação em sequenciar próximas as imagens de uma mesma série ou com temas parecidos, o que denota zelo de colecionadora na organização do álbum. Aos olhos de um observador, separado um século no tempo, os cartões exalam uma atmosfera da época e do universo cultural de Lili. Não podemos apreender o tempo, mas parece que sim, afinal não seria esse um dos desejos alimentados na época com a fotografia? Congelar as imagens nas frações do tempo talvez representasse uma forma perenizá-lo.
Não notei quase nada sobre o modo de vida de Lili naquela fazenda através dos cartões. Por sua vez, as imagens emitidas pelos seus correspondentes constituíram sinais da modernidade que foram paulatinamente invadindo aquele ambiente rural. Os temas dos cartões oscilam entre imagens de cidades (Rio de Janeiro, Salvador, Porto e Paris); paisagens bucólicas europeias; diversos tipos de flores e variados retratos de crianças, mulheres e casais compostos em cenários idealizados em estúdios, no Brasil e na Europa. As anotações e mensagens são pistas deixadas dos circuitos sociais que permeiam os cartões. Lili se correspondia com pessoas de cidades próximas ou distantes, Amargosa, Juazeiro, Salvador ou Rio de Janeiro. Em geral eram amigas, familiares e conhecidos, que com gestos de cordialidade, emitiam votos de amizades e desejos de felicidades. Lili não vivia isolada e suas lembranças sugerem isso. O álbum de cartões foi um testemunho do universo particular singelamente construído por aquela garota no sertão baiano do início do século 20. Um mundo imaginário formado por imagens e palavras que lhe envolvia com lembranças e sentimentos afetuosos. Sempre que quisesse viajar ele estaria ali.


Valter de Oliveira atua como professor de História na UNEB-DCH IV e no momento desenvolve pesquisa sobre usos sociais de fotografias nos sertões baianos.